Uma das principais discussões em demandas judiciais entre cotistas e prestadores de serviço de fundos de investimento é a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor (CDC). A definição sobre a utilização da norma consumerista é de extrema relevância, impactando não apenas a condução da ação judicial e seu resultado, mas também a própria indústria de fundos de investimento.
Em termos processuais, a aplicação do CDC afeta os seguintes pontos:
- Responsabilidade Objetiva dos Prestadores de Serviço (art. 14): Impõe a responsabilidade sem a necessidade de comprovação de culpa.
- Inversão do Ônus da Prova (art. 6º, inciso VIII): Facilita a defesa do consumidor ao transferir ao fornecedor a obrigação de provar a inexistência de defeito ou culpa.
- Responsabilidade Solidária na Cadeia de Fornecimento (art. 7º, parágrafo único, e art. 14): Todos os envolvidos na cadeia podem ser responsabilizados conjuntamente.
- Afastamento da Cláusula de Eleição de Foro (art. 51, inciso I, e art. 101, inciso I): Torna nulas cláusulas que dificultem o acesso do consumidor à Justiça.
Diante disso, é crucial analisar a jurisprudência sobre o tema e avaliar se a norma consumerista deve ser aplicada nas relações entre o investidor e os prestadores de serviço do fundo de investimento.
Vulnerabilidade do Cotista – Análise da Jurisprudência
Com efeito, a vulnerabilidade da parte é um fator importante a ser examinado, considerando que o CDC foi concebido para proteger o vulnerável, equilibrando as relações desiguais.
Por essa razão, em algumas situações, os tribunais analisam as características do investidor para definir a aplicação do CDC.
Tal ponto é essencial, pois não é incomum que cotistas institucionalizados, profissionais ou qualificados e, portanto, não vulneráveis ou hipossuficientes, solicitem a aplicação do CDC visando justamente a aplicação das regras acima mencionadas.
Todavia, infelizmente, em alguns casos, os tribunais aplicam o CDC de forma indistinta, inclusive em benefício de investidores profissionais ou qualificados, o que acabar por banalizar a própria existência do CDC.
Dessa forma, não há jurisprudência consolidada sobre o tema, havendo, tanto nos tribunais estaduais, quanto no próprio Superior Tribunal de Justiça, uma ausência de definição sobre se o CDC deve ou não ser aplicado e, caso seja, em quais casos os cotistas merecem a proteção conferida pela norma consumerista.
Contradição entre Consumo e Investimento
Apesar da importância da análise das características do investidor para saber se o CDC é aplicável ao caso, a norma consumerista deve ser afastada independentemente das peculiaridades do investidor.
A Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) introduziu importantes modificações ao Código Civil, que afastam a aplicação de diversas normas do CDC aos fundos de investimento, notadamente as que estabelecem que:
- Os prestadores de serviço só podem ser responsabilizados em caso de dolo ou má-fé.
- A responsabilidade dos prestadores é avaliada conforme a natureza de obrigação de meio.
- Não há solidariedade entre os prestadores de serviço.
Essas disposições afastam a possibilidade de responsabilidade objetiva e solidária previstas no CDC. Como ressalta Marcelo Vieira Adamek: “(…) a Lei de Liberdade Econômica, ao introduzir no Código Civil, uma disciplina geral para os fundos de investimento, trouxe para eles regras especiais que, como tais, se sobrepõem às regras gerais do CDC naquilo em que, em comum, por ambos porventura sejam tratados”.
Ou seja, por ser mais especial e posterior, a Lei da Liberdade Econômica resta por afastar completamente qualquer hipótese de aplicação do CDC às relações de investimento, notadamente no que se refere à possibilidade de responsabilidade objetiva e solidária dos fornecedores, tendo em visa que a disposição mais recente e especial deve prevalecer sobre a anterior e genérica, conforme artigo 2o, § 1º e 2o da LINDB (Decreto-Lei no 4.657/1942).
Cotista como Destinatário Final?
Outra questão chave é saber se o cotista pode ser considerado o destinatário final dos serviços prestados pelo gestor ou administrador, isto porque o CDC define consumidor como aquele que adquire produto ou serviço como destinatário final.
Ocorre que, os cotistas não contratam diretamente os prestadores de serviço, pois é o próprio fundo que realiza essa contratação, questão que já foi observada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo: “(…) não se aplica o Código de Defesa do Consumidor ao caso em questão, porque os autores não são destinatários finais dos produtos e serviços e questão, porque são cotistas de fundo de investimentos, não havendo situação de vulnerabilidade a que alude a legislação protetiva especial”
Outros Fatores Relevantes
- Normas Reguladoras da CVM: A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão regulador do mercado de valores mobiliários (art. 8º da Lei nº 6.385/1976), possui normas que conferem elevado e adequado nível de proteção ao investidor, muitas vezes superior ao CDC.
- Poder de Alteração pelos Cotistas: Os cotistas podem alterar o regulamento do fundo e substituir os prestadores de serviços. Essa prerrogativa, especialmente evidente em fundos destinados a investidores profissionais ou qualificados, demonstra a inexistência de vulnerabilidade do cotista frente aos prestadores de serviços.
Considerações Finais:
É essencial que os tribunais analisem tecnicamente as relações entre investidores, fundos de investimento e seus prestadores de serviço, sendo importante que seja observada a previsão do artigo 31 da Lei nº 6.385/1976, que permite que a CVM participe das demandas judiciais, oferecendo pareceres ou esclarecimentos que possam auxiliar na análise de eventuais responsabilidades.
Conclui-se, ainda, que é salutar a evolução da jurisprudência no sentido de reconhecer a inaplicabilidade do CDC nas relações envolvendo cotistas, fundos de investimento e, especialmente, prestadores de serviços, notadamente nos casos em que o investidor é institucional, qualificado ou profissional.
A equipe do contencioso cível da BSCSA, representada por Matheus Perlingeiro de Farias, acompanha de perto todas as atualizações legislativas e jurisprudenciais que impactam o mercado de capitais e as relações entre cotistas e prestadores de serviço de fundos de investimento. Nosso compromisso é oferecer um serviço jurídico de excelência, em consonância com os mais recentes entendimentos dos tribunais superiores. Para mais informações e novidades, acompanhe as nossas redes sociais!